Como a busca excessiva pelo propósito, a felicidade e o sentido da vida os afasta do que queremos e provoca exatamente aquilo queremos evitar.

Outro dia um amigo nos falava que sua rotina havia se transformado na “quarentena” que já dura um ano. Ele havia incorporado caminhadas, estava comendo melhor, dormindo cedo e para completar, havia comprado uma impressora. A idade estava chegando afinal. 

Rimos por identificação (ando dormindo às 21 h e imprimindo documentos). E se você está na casa dos 30 ou 40, assim como eu, deve ter chegado aqui com uma coleção já catalogada de conselhos para a vida, que quase certamente nunca conseguiu levar a cabo por mais de uma semana. Acordar cedo para o seu milagre pessoal, ler cinco páginas por dia, manter seu diário de gratidão, lembrar-se de ser vulnerável, atingir todo o seu potencial e certamente, manter suas ações sistematicamente girando em torno do seu elevado e único propósito. Tudo isso parece um trabalho de carga cheia por si só.

Às vezes as indicações soam contraditórias, exigindo de nós, heróis do autoconhecimento, uma dose extra de atenção à bula.

Dou alguns exemplos: 1. É preciso ter atitude e tomar as rédeas da vida, mas também é sábio esperar o agir do universo trazendo boas novas; 2. O sentido da vida está fora de nós mesmos, no serviço ao outro, mas é preciso encontrar algo em si e jamais depender de um fator externo (e especialmente de alguém) para dar sentido à própria existência ou felicidade; 3. É fundamental ser produtivo, ou seja, produzir mais com menos, mas o tempo deve ser experienciado de forma não linear, com os pés no presente, “mindfulnessly” no agora.

Apesar de serem recomendações bem intencionadas, fica claro que passamos por um momento de vozes demais. De uma epidemia de propósito, onde nós nos colocamos no centro do universo, numa busca egocêntrica por preencher o vazio de um buraco sem fundo. 

Felicidade é ciência, as recomendações para uma vida boa são muitas e o risco de cairmos na superficialidade dos conselhos e gurus é tremenda. Mas me arrisco aqui no papel de mais uma voz para dizer que a genialidade está no simples, nas origens, na essência. Na sabedoria de quem já viveu muitos anos. No que nossas avós diriam.

Minha avó não falava muito, pelo menos na fase da vida em que a conheci. Mas sempre que abria a boca a gente se deliciava com as suas pérolas acidamente bem humoradas. Era engraçada, observadora e negociadora astuta. Tenho certeza de que você teve figuras assim cruzando o seu caminho, que elas não necessariamente seguiam conselhos dos livros de autoajuda, mas que falavam basicamente o mesmo que Nietzsche ou Plantão, bem à sua maneira.

Lembro dos meus avós como adultos mais bem resolvidos do que os da nossa geração. Mais responsáveis e mais realistas. Ao mesmo tempo em que percebo em mim e em meus amigos trejeitos infantis. Queremos evitar a qualquer custo as agruras da vida, fugindo da realidade para a loja de doces cada vez que um sentimento ruim nos assola. Não dá pra ser feliz o tempo todo.

Responsabilidade que é diferente dos devaneios de que é possível enriquecer e transformar-se totalmente sem estudar e ralar muito, sem se decepcionar centenas de vezes e continuar fazendo o que se deve por anos a fio antes de colher os louros. Aquela parte da história que as bibliografias não contam. Os anos longos e chatos, onde quase nada realmente aconteceu. 

O mundo do nosso tempo parece um buffet gigante, com todos os sabores possíveis ao alcance, e assim trocamos nossa atitude resiliente por cansaço e culpa, afinal, se não acertamos logo de cara é porque nos faltou algo que injustamente o mundo não nos deu (olha aí a criança esperneando) ou ainda porque somos preguiçosos e pouco inteligentes. Com todo e qualquer conteúdo disponível democraticamente, não ser CEO da sua startup de seis dígitos aos 23 é um absurdo. Até Harvard tem cursos gratuitos e online, pelo amor de Deus! Mas são em inglês… o que também não é um problema, já que existem milhares de aulas gratuitas de idiomas e perfis que produzem conteúdos como manufaturas chinesas todos os dias. 

Isso não é responsabilidade, é fantasia. Realismo é o que fizeram nossos avós e pais, conquistando tudo a duras penas. Trabalhando em seus ofícios até que fossem realmente bons naquilo que faziam. Até que se apaixonassem por ele. Isso sim é atingir seu potencial. Isso dá pra chamar de propósito. “Quem não morre não vê Deus” dizia a vó Tereza, falando sobre esforço de pés no chão. 

Hoje quando somos relativamente bons em algo, já partimos para a próxima, entediados das nossas habilidades superficiais. Meu avô trabalhava nas minas de carvão. Ele manobrava uma máquina imensa de escavação à céu aberto chamada Marion. A segunda maior do mundo, pelo que nos disseram. Não havia estudado e certamente não havia chegado ali do nada. Era uma responsabilidade tremenda. Nosso orgulho.

Não quero cair no vala comum da rabugice de que os tempos eram melhores, mas não posso deixar de beber da fonte de onde viemos. Somos um pouco dessas pessoas também. Não aprender deles seria um desperdício tremendo.

Somos um pouco dessas pessoas também. Não aprender deles seria um desperdício tremendo.

O sentido da vida está fora de nós mesmos

Só encontramos essa realização e felicidade quando saímos de nós. Quando transcendemos, indo ao encontro de alguém ou mesmo do mundo. E se formos falar de sentido da vida como manda a cartilha, ou pelo menos para além do que nos ensinaram nossos avós, será difícil não passar por alguma área do saber como logoterapia por exemplo, a psicoterapia centrada no sentido. Para ela são três os caminhos possíveis para darmos sentido a nossa existência: o da criação (nosso trabalho, por exemplo), o das experiências (o belo do mundo) ou o caminho das nossas próprias atitudes, como reagimos frente às circunstâncias da vida.

Entretanto nós tiramos completamente a graça do processo (e a possibilidade de sucesso na verdade) quando transformamos essa descoberta numa saga. É como desejar uma gargalhada e fazer todo o possível para encontrá-la. Você vai gozar do prazer gutural de uma boa risada quando cruzar com algo totalmente inusitado e surpreendente. O riso será inevitável. Assim também a felicidade, o amor, e a meu ver, o sentido da vida.

Outra coisa sensacional que me faz lembrar saudosa de tempos mais simples é o senso de comunidade. Algo me diz que não deveríamos estar caminhando jornadas tão solitárias. Criando nossos filhos em regimes um-a-um, competindo por nossas carreiras e acumulando sem limites dentro dos nossos centros privados de entretenimento. Meus avós tiveram 12 filhos, e ouso imaginar aqui deste lado que os seus tiveram pelo menos meia dúzia. Isso por si só já dá para contar como uma comunidade. E haviam vizinhos, muitos vizinhos! A escola era outro núcleo forte e atuante. As igrejas, os centros comunitários. Uma parte gigantesca de experimentar a vida está em experimentar do outro. E não estou falando na experiência da rede social, mas naquela onde há socialização de olho no olho, e onde muitas vezes um potinho de plástico cheio de sopa aparecia como uma gentileza no final do dia. A partilha (ou o que chamaríamos hoje de “share”) era do cotidiano.

Em uma das poucas entrevistas que ainda temos documentada de Viktor Frankl, pai da logoterapia, o ouvimos falar que encontramos sentido para nossas vidas não apenas quando experienciamos ou vivenciamos algo (e veja que ele não fala em realizações concretas aqui) mas também quando experienciamos alguém. Quando vemos no outro algo absolutamente único, irreplicável na evolução do cosmos, incomparável com qualquer outro ser humano. E essa singularidade pode ser compreendida apenas por uma pessoa que ama, porque ela não vê apenas a essência, mas também os potenciais da pessoa amada.” Segundo ele, quando a amamos, a promovemos, a aliviamos, e assim ela se realiza e nós também. Não é uma busca por autorrealização, é uma entrega real ao outro. E nesse sentido obviamente nos vêm à mente nossos queridos mais próximos, nossos filhos, mas numa comunidade ampliamos este pensamento. Buscamos o bem para além de nós mesmos e dos nossos.

O sentido está fora, na história que escrevemos quando não estamos preocupados em buscá-lo. É totalmente subjetivo, pessoal. É uma história que contamos sobre nós mesmos, unindo nosso passado, presente e futuro numa narrativa que nos pareça coerente. E isso tudo não apenas para gozar do que é bom, mas há sentido também no sofrimento, na dor, em tudo o que fazemos.

As ciladas da hiperintenção e hyper-reflexão

Escrevo então para convencê-lo (e a mim também) a interromper a busca que ironicamente nos afasta do que desejamos. É como querer dormir desejando o sono, que só vem quando relaxamos e não pensamos mais nele. “O prazer é e deve permanecer efeito colateral ou produto secundário; ele será anulado e comprometido na medida em que dele se fizer um objetivo em si mesmo”, nos ensina Frankl.

Dezenas de gurus de autoajuda, desde o Segredo até o mais recente hit que nos sugere apertar o afamado botão do f*, confirma a ironia de que querer algo demais - hiperintenção - nos afasta do resultado e a atenção excessiva sobre um tema - hyper-reflexão - faz acontecer exatamente o que se teme. 

Tudo isso porque essa atenção intensa está voltada a nós mesmos e na nossa auto-imagem ou imagem desejada - O que os outros irão pensar de mim? Minha performance é adequada? Estou desperdiçando todo o esforço de meus pais e das pessoas que confiaram em mim? Estou à altura do meu parceiro? - Nem precisamos do olhar afiado dos anciãos para saber que este não é o caminho.

Frankl em seus estudos nos sugere duas possibilidades: a primeira é a desreflexão, que vou traduzir de forma bem simplista aqui como parar de pensar em si mesmo e se entregar à experiência. A segunda, mais bem humorada e talvez parecida com o estilo da minha avó seria a intenção paradoxal, que é fazer exatamente o contrário do que achamos que deveríamos fazer, porque isso nos leva a um confronto real com nossas fobias, que acabam por provocar o que tememos.

Em um dos seus livros (1985) ele cita o caso de um paciente, um jovem médico, que tinha medo de suar na frente dos outros. Esse receio o deixava ansioso, o que o levava a suar litros, provocando exatamente o que ele desejava evitar. Quem já teve problemas em se apresentar em público sabe do que eu estou falando. A recomendação de Frankl: fazer todo o possível para deliberadamente suar na frente das pessoas. Sem a ansiedade de tentar controlar seu medo, o problema se foi em uma semana.

Um último exemplo para ilustrar os ciclos onde despercebidamente nos colocamos. Segundo Joan Garriga Bacardí, psicólogo humanista e escritor Espanhol, estamos transitando de uma cultura excessivamente patriarcal para outra de caráter filial, que confunde e debilita tanto filhos, quanto pais. Pais e mães jovens tendem a carregar um peso excessivo construído pelo medo de serem pais ruins. O foco desmedido pode levar a tensão, tentativas frustradas, culpa. Colocando os filhos em primeiro lugar os pais se desumanizam, deixam de cuidar-se, atendendo as necessidades dos filhos antes de cuidar das suas. O resultado esperado é sem dúvida confusão, cansaço, falta de propósito e tristeza. O tempo então com os filhos passa a ter menor qualidade, o que retroalimenta o ciclo negativo de medo de converter-se em pais ruins.

Já num ciclo positivo, os questionamentos em relação a parentalidade vem, mas existe a aceitação da própria humanidade. Pais que buscam pela integralidade do ser, cuidando de si primeiro para que sejam não apenas bons pais, mas também bons filhos, bons profissionais e companheiros. Para que se sintam felizes. Com as energias renovadas há maior potencial criativo, as forças são restabelecidas. O tempo junto é de maior qualidade e os pais ocupam sua função de autoridade paterna, deixando a criança segura para ocupar seu papel de filhos. Ou seja, a busca não era por aperfeiçoar habilidades condizentes com ser um bom pai ou uma boa mãe, mas ao contrário, em cuidar de si primeiro, o que leva ao resultado esperado como um subproduto dos esforços (ou até da falta deles).

Vale para reduzir ansiedade e para alcançar metas, porque quando tiramos a tensão excessiva por alcançá-las, de fato conseguimos trabalhar e atingi-las com a mente clara e sã. E vale para a busca por sentido e realização.

Interromper a busca que ironicamente nos afasta do que desejamos pode ser uma forma mais leve de caminhar.

Pare de tentar

Não escrevo para que deliberadamente passemos a tentar nos tornar versões piores de nós mesmos, ou para que nossas listas de resoluções de ano novo sejam medíocres em 2021 depois de um ano extremamente difícil. Não falo em baixar a régua ou fazer o que dá, com o que temos.

Escrevo para que paremos de tentar. De buscar. De refletir. E para que passemos a viver, experimentar, realizar.

Escrevo para que a busca e a reflexão excessiva se transforme em ações. Em trabalho, em perseverança, em estudo, em esforço contínuo e apaixonado. Causas simples são nobres. Não é preciso trocar de continente ou ter uma descrição de vaga sexy para fazer a diferença. O propósito, o sentido da vida, a felicidade encontraremos pelo caminho, e a startup de seis dígitos, se estiver nos planos, virá com a lição de casa feita.

Desejo a todos nós um próximo ciclo adulto e responsável, de gente que acorda cedo e vai a luta. De gente que caminha e, se necessário, compra uma impressora. De gente que cria o futuro, com alma talhada e ancorada no que nos ensinaram os meus e os seus avós.

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